sexta-feira, 23 de maio de 2008

Nonetheless

"Não lembro mais do rosto ou dos cabelos. Muito menos do nome da minha primeira namorada. Janaína, Paula, Sheila, Ana, não sei. Esqueci por completo a graça da menina. Os pezinhos, porém, permanecem vivos e nítidos na memória tarada e louca. Dedinhos delicados, cadenciados e muito bem desenhados. Tinham o tamanho, o passo e a desenvoltura na medida certa. Não preciso de foto. Descrevo-os como se os visse agora. Quanto à mocinha, nem a cor dos olhos...


Depois dela, nunca mais enxerguei pés parecidos. Por causa dela (ou deles) reajo indignado com mulheres que não cuidam dos pezinhos. Vejo a dedicação pelo par da sustentação como necessidade básica da vaidade feminina. Isso a primeira namorada tinha de sobra. Além de beneficiada pela natureza, os paparicava com cuidado extremo. Eu adorava. Agradecia a Deus por dormir agarrado a eles. E nada mais importava. A ponto de esquecer da própria companhia. Claro, o lapso de dedicação decretou o fim do namoro. E a perda de contato.

Por muito e muito tempo, jamais mais a vi ou soube notícias. Não que eu sentisse falta dela. Nada disso. Sentia a perda dos pezinhos. E só deles. Finalmente os reencontrei em uma grande livraria da cidade. Curtia uma tarde de folga. Circulava por obras de arte e arquitetura, absorto em pensamentos e palavras, até que pezinhos docemente acomodados em havaianas cor-de-caju me fizeram reviver o passado. Eram eles. Ou melhor, era ela, quem eu nem lembrava mais do nome.

- Oi...
- Oi... (pausa) Eduardo, Edu, é você? Como tá diferente! (espantada)
-
(isso é bom ou ruim?) Sou eu, sim. Como estão as coisas?
- Tudo bem. Pôxa, nunca mais soube nada de você...
- Não achei que você se importasse com isso.
- (riu sem graça)
(silêncio constrangedor)
- E aí casou?
- Que nada. Sou uma mulher complicada, você sabe...
- (Sei?) Posso te convidar para um café?
- Não tenho muito tempo, mas...

(meia hora de amenidades, dois capuccinos e uma garrafa de água mineral sem gás depois)

- Olha, sei que a gente não se vê há muito tempo, muita coisa mudou e tal. Mas quer se casar comigo?
- O quê? Eduardo, o que você está dizendo? (incrédula)
- É sério. Quero me casar com você.
- Por quê? Com assim? Você está louco??
- Eu perdi você uma vez e não quero perder de novo. (dissimulado)
- Tá, mas e daí? A gente não se vê há mais de 15 anos, a gente nem se reconhece mais, Edu. As coisas não são assim, me desculpe.
- Não importa.
- Claro que importa. Olha, você precisa se tratar, me desculpe.

E lá se foi embora, de bundinha empinada, rebolado para lá e para cá e pisadas agressivas. Os pezinhos, aqueles ingratos, a seguiram junto. Para mais uma vez me abandonar. Mas acredito que se eles pudessem se desprender da dona, viriam correndo (sem trocadilhos) para mim. E ela que se danasse. Vagabunda..."

A.